A relação da escola com as famílias tem sido considerada, nos últimos anos, como objecto de investigação e discussão entre muitos dos que se interesam pela educação , defendendo-se a necessidade de invertir em práticas de comunicação e parceria entre estes dois espaços sócio-educativos, contrariando descontinuidades e rupturas no crescimento e vida das crianças. No entanto e como todos sabemos, esta relação está longe de ser pacífica, verificando-se ambivalências, confrontos e divergências, decorrentes de diferentes pontos de vista dos implicados.
Como se faz e como se desenvolve a relação escola- família depende das perspectivas, cultura, investimento, ideologia de professores, famílias e comunidade onde cada escola está inserida(2).
Apesar de se poder considerar que cada caso é um caso, a experiência e a investigação neste domínio apontam para algumas questões básicas consideradas comuns na relação escola-família. Tentemos analisar algumas delas.
Do ponto de vista da escola… o que fazer?
A primeira ordem de questões decorre das famílias serem percepcionadas como os primeiros educadores, a quem compete a tarefa de educar, tendo o dever de acompanhar as tarefas escolares, participar nas iniciativas que são propostas pela escola e proceder à passagem de informação que seja determinante para o bom funcionamento da aprendizagem. A escola, cumprindo um dos seus objectivos, devolve informação útil sobre o programa e o aproveitamento escolar na criança, aplicando o que está legalmente definido.
Nesta dimensão a relação estrutura-se com base no que alguns autores chamam “ as obrigações básicas das famílias e as obrigações básicas das escolas” ( Joyce Epstein, 1993), sendo que, quando alguns “lados” não cumpre o estabelecido, surgem obstáculos na comunicação e a presença de estereótipos, expressos na atribuição de culpas e julgamentos morais: as famílias são desinteressadas, poucos responsáveis, ausentes, incapazes de educar e investir na escolaridade dos seus filhos.
Estas questões tornam-se particularmente sensíveis em determinados meios e face a determinadas famílias, as consideradas “problema ou difícies de alcançar”(Don Davies,1989), que normalmente se classificam como “ excluídas socialmente , provenientes de grupos minoritários ou zonas carenciadas”. Todas aquelas que na sua cultura e modos de vida revelam padrões de comportamentos diferentes e sobre os quais é difícil manter uma atitude compreensiva e de diálogo.
Não rejeitando as dificuldades reais que as famílias apresentam, fortemente condicionadas pelas suas condições sociais e trajectórias de vida, parece necessário entendê-la como uma “instituição” activa, com autonomia, capacidades e projectos, o que exige desenvolver uma outra compreensão da realidade das famílias, não centrada naquilo que alguns autores referem como os seus “défices”, mas antes reconhecendo e valorizando as suas “experiências, necessidades e competências”( Canário,2001).
A adopção desta perspectiva implica instituir uma outra cultura escolar e profissional, onde as famílias possam ser ouvidas e valorizadas, com base em estratégias de capacitação e autonomia pessoal, no quadro de um projecto educativo que integre as diferentes culturas e competências de todos os envolvidos.
Mas capacitar as famílias não significa, por exemplo, o recurso a acções de informação, com temas orientados por especialistas, segundo uma lógica de compreensão dos défices( alimentação, higiene, saúde…), entendendo-se as famílias como alunos a quem é preciso ensinar o que sabem. Os resultados destas iniciativas são frequentemente nulos, pelo que parece necessério”agir” com as famílias, não para elas” (Espiney,1997), implicando-as directamente na realização de acontecimentos que possam ter lugar na escola, por referência aos seus problemas, necessidades e interesses.
Se concordarmos que “ a educação é um processo permanente de auto-construção da pessoa humana”( Canário, 2001), parece ser necessário partir das culturas e potencialidades das famílias como sujeitos de direitos, o que implica que a escola possa construir novas dinâmicas de cooperação e relação, equacionado, entre outros aspectos, a lógica do seu funcionamento interno, o seu sentido de poder e saber e a sua relação com os alunos( Canário, 2001).
Esta última questão parece ser determinante, quer para o sucesso escolar das criança quer para a relação com as famílias e a comunidade, já que sendo “os alunos a comunidade dentro da escola ( Canário,1992), os processos de aprendizagem devem ser baseados em conteúdos socialmente significativos( história local, manifestações culturais, modos de vida…), cruzando os diferentes espaços e tempos de formação das crianças e suas famílias. Abrir a escola ao meio significa, mais que fazer algumas visitas de estudo, mobilizar e potenciar os seus recursos como eixos de aprendizagem e desenvolvimento.
Do ponto de vista das famílias…participar…como e porquê?
Uma outra ordem de questões decorre de forma como as famílias percepcionam a escola e as suas expectativas face à aprendizagem, cada vez mais ligada ao sucesso do futuro das crianças e jovens. Nesta perspectiva, as familias tendem essencialmente a valorizar e a exigir uma boa instrução, desvinculando-se de uma participação efectiva no contexto organizacional da escola. Acrescente-se que a ausência de uma visão mais alargada sobre como e onde intervir, por parte das famílias, ( o que posso fazer? O meu contributo será importante?) é reforçada pela ausência de hábitos de participação, situação decorrente da nossa história social e política, que determinou ainda o fechamento da escola face às comunidades e a sua perspectiva auto-centrada.
A aprendizagem dos benefícios da participação enquanto prática e exercício da cidadania, para além do estritamente necessário( estar presente nas reuniões, ajudar nas festas…) implica um longo caminho, não muito fácil, porventura mais conflituoso, mas necessariamente mais rico e mais justo. Implica considerar a participação como o exercício de parte de poder que as famílias detêm em qualquer decisão, legitimando os seus sistemas de interesses, valores e projectos educativos(Lima,1992;Nóvoa, 1992). Acentua-se o papel das famílias enquanto parceiros, com funções no apoio à organização e execução de projectos, questão que coloca a necessidade de estabelecer consensos, promover a interdependência pessoal e profissional e a aprendizagem recíproca do viver em conjunto(Jaillet,1995; Wolfendale,1992; Rolan Meighan,1989).
Se atendermos à nossa realidade, é possível dizer-se que esta perspectiva não é facilmente exequível , já que aponta para um outro nível de participação, não exclusivamente centrada nos “pedidos” e necessidades da escola, mas sobretudo decorrente de negociações entre professores, crianças e famílias, considerados como sujeitos autónomos e competentes, com direitos e deveres.
Sabemos que instaurar esta nova visão, implica ainda percorrer um longo caminho, mudando concepções e práticas de trabalho e relação. Sabemos também que, muitas famílias evidenciam um afastamento da escola, que não permite continuidade e consistência nas relações e estratégias de participação, exercidas quantas vezes de forma irregular, timida, fugidia. Importa considerar a participação nas suas diferentes modalidades de envolvimento e partilha que se apresentam. Convém relembrar que as famílias se relacionam com a escola no seu tempo livre, pelo que deverão ser consideradas as suas ocupações profissionais, a falta de incentivos para a sua ausência ao trabalho, instituindo-se processos de negociação no que respeita a horários e dias para os diferentes contactos, reuniões e iniciativas que possibilitem a participação de todos. Processo que, como sabemos, é difícil, exigente, lento, mas possível e desafiador.
Para terminar, gostaria de salientar que, para além do que se encontra legislado e porque a mudança não se decreta, a relação escola-família e comunidade exige de todos os que nela participam “ uma abordagem(…) que tenha em conta a especifidade e a singulariedade dos contextos e dos públicos” ( Canário,1999). Ouvir as famílias,compreender os seus trajectos pessoais e projectos de que são portadoras, escutar as crianças enquanto elementos activos de uma comunidade, mobilizar os recursos e potencialidades do meio, colaborar com professores, autarcas, associações.
Neste sentido e como a maioria de trabalhos realizados nesta área aponta, cabe aos profissionais de educação, às famílias e representantes locais, a responsabilidade de iniciarem o diálogo e ”arriscar dar visibiilidade ao seu trabalho face à comunidade incluir outras instituições e constituir redes de colaboração, aprender a trabalhar em contextos informais e potenciá-los como modos diversificados de participação para a democracia e para a cidadania”( Montenegro,1997).
Num tempo tão complexo como o nosso, face às dificuldades com que nos confrontamos, mas também às enormes potencialidades de vivermos em conjunto é necessário arriscar a mudança. E podemos sempre, como refere Edgar Morin(1995) “responder às incertezas com a estratégia e às contradições com a aposta”.
Bibliografia
Canário, Rui (1999) Educação de Adultos – Um Campo e uma Problemática, Lisboa, Educa
Canário, Rui; Alves, Natália; Rlo, Clara( 2001) Escola e Exclusão Social,Lisboa, Instituto de Inovação Educacional, Educa
Davies, Don et al (1989) As Escolas e as Famílias em Portugal- Realidade e perspectivas, Lisboa, Livros Horizonte
Montenegro, Mirna(org.9 (1997) Educação de Infância e Intervenção Comunitária, Setúbal, Instituto das Comunidades Educativas
Nóvoa, António e Popkewitz, Thomas (org.) Reformas Educativas e Formação de Professores,Lisboa, Educa
(1) versão reduzida e adaptada da comunicação apresentada no Seminário “ Municipalização da Educação : Ameaça ou Oportuidade?” – FERSAP,Setúbal, 2003
(2) Por simplificação, adoptam-se neste artigo as designações de “Escola” e “ Professores” com um sentido genérico, incluindo também quer diferentes graus de educação e ensino ( como creches, jardins de infância…) quer diferentes profissionais da educação ( como educadores de infância, auxiliares de educação,…)
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